Qual o perfil da nova família e como a escola deve lidar com essa nova configuração?
ROSELY SAYÃO - Antes de tudo, é preciso fazer uma correção: não é a nova família, são as novas famílias. Não podemos mais falar de família no singular. Isso a gente conseguia fazer até o final dos anos 1950, depois surgiram diversos outros perfis. Mas uma questão acompanha essas novas famílias. Não falo da configuração, do desenho, da composição. Falo da dinâmica familiar. A família criou modelos diferentes e é preciso pensar também no tipo de relacionamento estabelecido entre todas essas pessoas. Antes a gente tinha um desenho que era bem clássico, que continha pai, mãe, filhos. E esses filhos conviviam com seus pais até que pudessem ter uma vida própria. Hoje nós temos pais que não necessariamente estão juntos dos filhos, seja por uma questão de relacionamento ou por excesso de trabalho. Essa relação, portanto, é assimétrica. E quem está no comando dessa relação hoje são os filhos. É em torno dos filhos que giram os adultos. Essa mudança radical é fundamental, porque muda também a maneira de pensar a escola, a relação com a escola e com a educação.
Você acredita que há uma crise de valores ou de autoridade nessas novas famílias?
RS - Há, sim, uma crise de autoridade. Temos que aceitar e reconhecer isso para talvez mudar. Agora, veja que não é uma posição pessoal. É algo já estudado por muita gente. Porque esse conceito de autoridade não é da educação, é da política. E a partir do momento que a política entrou em crise, e não falo somente da política brasileira, mas da política como instituição, o conceito de autoridade também entrou em crise, e agora nós temos que reinventá-lo para educar.
Os valores também estão invertidos?
RS - Não sei se estão invertidos, mas mudaram, porque o mundo também mudou. Eu vejo muitas escolas dizerem 'os pais não têm valores'. Têm e são os valores que a sociedade impõe. E quais são esses valores? O valor da aparência, o valor da juventude, da felicidade, do consumo. E não foi a família que inventou esses valores, foi a sociedade, por questões econômicas e políticas. As famílias são vítimas desses valores, não algozes. E a escola está submetida aos mesmos valores. Mas a escola ainda não chegou ao século XXI, então acha que seus alunos devem seguir aquele modelo do passado. Nunca mais seguirão.
Qual seria a configuração dessa escola do século XXI que você menciona?
RS - Em primeiro lugar, nós estamos na época da diversidade. É impossível a gente juntar 25 a 30 alunos e tentar ensinar a eles a mesma coisa ao mesmo tempo. Temos que reconhecer que esse ensino está falido. O professor, para educar, tem que olhar para seus alunos e pensar... Ele terá que diversificar.
E o que muda nessa relação das novas famílias com a escola, exatamente?
RS - Os pais sempre vão pensar nos seus filhos. Na escola, não há filho de ninguém. Na escola há alunos. Quando as crianças fazem a passagem do papel de filho para o papel de aluno, eles mudam, nós mudamos. Qualquer um de nós, quando passa a frequentar o lugar de aluno, muda. Às vezes eu faço palestras para professores, eles mudam também de comportamento. Passam bilhetes, mexem nos celulares. Então é um papel que vem carregado, é um pacote. Portanto os pais esquecem que a escola é para alunos, não para filhos. E a escola muitas vezes também acaba falhando nesse diálogo porque, em vez de falar 'o aluno', fala 'seu filho'. Filho é uma coisa, aluno é outra.
Você diria que a escola brasileira está preparada para essas novas configurações familiares?
RS - Está preparada, só não ousa dizer 'muito bem, entendi tudo isso e agora vamos lá, mãos à obra'. É preciso um pouco de coragem. Foi preciso muita coragem para a família mudar. Uso como exemplo aquele seriado Anos Dourados. Ele mostrava o início da transição das famílias. E veja que ali havia algumas famílias que decidem não mudar e outras que começam a pensar em separação, em divórcio, mas sofrem muito por causa disso. Muitas famílias foram isoladas, excluídas, porque ousaram mudar. Mas foram elas que trouxeram as mudanças para a realidade. Com a escola acontece a mesma coisa. As escolas que têm essa coragem de mudar, inicialmente são estranhadas, negadas pela comunidade. Mas são elas que trarão novos ares para a instituição escolar brasileira. Serão as pioneiras.
E essa nova relação com a escola também altera a concepção do que é ser professor?
RS- O professor é uma figura, é uma pessoa que exerce uma função dentro de uma instituição. Mas quem precisa guiar essa nova concepção é a instituição. Porque, afinal, as pessoas trabalham em conjunto nessas instituições.
No âmbito da educação, o que hoje é responsabilidade da família e o que é responsabilidade da escola? Em que medida esse trabalho conjunto deve acontecer?
RS - Há uma discussão em pauta na sociedade que foi muito bem abordada pelo filósofo Fernando Savater, em um livro chamado "O Valor de Educar", escrito no final dos anos 90. É a questão da diferença entre educar e instruir, que é inócua, não existe. Porque não é possível instruir sem educar, e não é possível educar sem instruir. Então essa é uma diferença que a gente não pode estabelecer. Mas eu falava há pouco que filho é uma categoria e aluno outra. Cabe à família dar conta do filho, tornar essa criança um ser humano de bem, segundo os valores da família. E cabe à escola tornar essa pessoa um cidadão de bem. Ou seja, o filho diz respeito a um ambiente privado, e o aluno a um ambiente público.
Como a escola pode facilitar uma aproximação com a família?
RS - É difícil, né? Toda nossa bibliografia, não só brasileira, mas da educação, trata como um tema muito delicado. A pergunta que devemos fazer é: é possível essa relação? Nós conseguimos afirmar que é possível, e também sabemos que não é bom quando não há essa proximidade. A maneira como temos agido até hoje, não é boa para a escola, tampouco para as famílias. Porque o que existe é uma relação de poder com uma instituição. A escola é uma instituição que tem um corpo de regras que todo mundo conhece. E as famílias são uma multidão desgovernada, porque cada família é um pequeno núcleo. Então nós teríamos que inventar essa maneira de aproximação. Eu diria que o passo mais simples, é o mais difícil: respeito mútuo. Se cada um começar a respeitar o outro, no sentido de confiar, delegar... A escola tem que se ocupar do seu trabalho e delegar para os pais a educação que eles podem dar. Os pais têm que cuidar dos filhos e delegar para a escola a educação que ela pode e deve dar. Mas hoje, está todo mundo querendo tomar conta um do outro. Por exemplo, não vou fazer isso com o pediatra do meu filho. Se eu vou ao consultório e ele receita um remédio amargo, uma injeção, falo 'bom, se precisamos fazer isso para ele sarar, eu dou'. É o respeito por esse profissional. As famílias, no entanto, não respeitam a escola dessa forma. Mas também a escola não respeita os pais. Acho que o primeiro passo tem que ser esse. Vamos baixar a guarda e respeitar. Pai e mãe erram? Erram. Escola erra? Erra. Todo mundo erra. Então por que temos que ficar pondo o dedo na ferida um do outro? Hoje as crianças têm toda uma agenda organizada pelos pais e também pelos professores na escola. Acabam, assim, tendo pouco tempo de sobra.
Quais as consequências disso para uma criança?
RS - A criança está perdendo o presente. Essa mania que nós adultos temos de pensar no futuro, acaba por roubar o presente delas. Toda vez que a gente rouba um pedaço de vida de uma pessoa, esse pedaço de vida vai voltar. Não sabemos exatamente como, mas temos algumas pistas. Atualmente, os universitários são absolutamente infantilizados. Os professores não sabem o que fazer com esses adolescentes, que não têm autonomia e só querem brincar. Isso é reflexo de uma relação que existe desde a infância. Quando a criança tem quatro ou cinco anos, passam a exigir que ela estude inglês, por exemplo, faça diversas atividades ao mesmo tempo. É importante que a criança tenha tempo para ser criança. Criança precisa brincar, essa é a linguagem da infância. E é brincando que ela se comunica consigo, com as questões internas dela, e com o ambiente externo. E aprende muito nesse processo.
Em entrevista recente, você mencionou que falta também uma aproximação entre pais e filhos. Como criar essa aproximação e ainda assim manter a questão da autoridade e do respeito?
RS - Essa aproximação cria, naturalmente, autoridade. Não é contra ela. Essa aproximação é uma tentativa de conhecimento. Quem é meu filho? Ele não é apenas aquilo que ensinei a ele. Não é uma cópia minha. Ele aprendeu aquilo que ensinei e muitas outras coisas. Com a combinação de tudo isso, quem ele é? Se eu me interesso verdadeiramente por meu filho, ouço o que ele diz, me interesso em saber, não faço inventário, questionários. Porque normalmente o que as mães sabem fazer é isso. 'Como foi na escola hoje? Com quem você saiu?' Isso não é conversa. Conversa é, por exemplo, assistir a um filme ou novela na companhia dos filhos e, em algumas cenas, questionar: 'se fosse você, o que você faria nessa situação? Entraria em uma situação dessas? O que pensa sobre isso?' Isso é diálogo. O cinema, inclusive, pode ser um excelente mediador nesse sentido. Porque aí não estarei falando do meu filho. Quando eu falo 'você, meu filho', pronto, ele já tapou os ouvidos. Agora, se eu falo desse ou daquele personagem, deixo o campo aberto para ele se mostrar e eu conhecê-lo. E no final do dia, é sempre bom pedir para os filhos contarem a história de seus dias. Sem questionários, e sim estimulando uma narrativa, a contação de uma história. Isso é troca. Se até os sete, oito anos são os pais que contam histórias a seus filhos, a partir dessa idade eles podem contar histórias a seus pais. A gente também aprende com os filhos.
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Emília Hardy e Yara Amaral
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